quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Trail de Lousa - partida falsa!

Eram 9:06 e estava reclinado no carro a escutar uma musiquinha suave, consultei o telemóvel o site oficial da prova, confirmei que a hora da partida era às 10h, abri a porta pus o corpo ao frio e espreguicei-me longamente. Perguntei a uma rapariga onde era a partida, sorrimos um para o outro e… Passam dois rapazes a correr que me perguntam se estou para o trail longo e digo que sim “É QUE A PARTIDA FOI ALTERADA PARA AS 9 HORAS!” 
F……………………………………………………………ç 

(mentalmente claro) 

Não acredito! Ainda agora vi o site… está lá escarrapachado: 10h! Já o ano passado fizeram esta brincadeira, não avisam, ou melhor, avisaram no facebook, não sabem organizar corridas. Corremos para a partida, eu deixei-os ir à frente porque tinha de fazer uma coisa muito rápida na WC dos homens, que se tornou mais lenta porque com a temperatura que estava foi como encontrar uma agulha num palheiro… 

Chego à partida num ambiente de fim de festa. Desilusão. No chão, os meus olhos encontram os despojos do entusiasmo de cada partida. Olhei para o portal nu, para o Páteo vazio à minha volta e o marcador do tempo a dar 0 horas, 22 minutos e 34…35 segundos de vida perdida. Lousa é uma aldeia numa cova de um vale, e a partida em si, é uma cova dentro de uma cova. 

Levanto a cabeça, vejo a aldeia que se estende pela encosta, acima dela sinto o peso todo da montanha a colapsar em cima dos meus ombros, a esmagar-me, subterrar-me num medo de me enfiar serra acima completamente sozinho, por trilhos que não conheço a perder-me do percurso. 

As pessoas perguntam-me – Então? Agora aproveita e vai ao Trail Curto! – O meu ser racional repete-me a pergunta tenta dar a volta por cima, é o que faz sentido ir ao curto! Faz-se um treino mais em conta e ainda dá para ir almoçar. Espero pelo curto? Vou ao longo atrasado? A razão que me diz para ir à corrida de 13 km e o sonho de fazer os 23 kms degladiam-se dentro de mim, estou dividido. A tentar encontrar as razões que me façam pender ou perder definitivamente para um lado ou outro. 

Decide-te!!! Digo para mim próprio irritado. 

Respiro fundo e tomo consciência de que a decisão já estava tomada dentro de mim, simplesmente tentava por todos os meios arranjar razões que o justificassem, razões que nunca encontraria. Passavam 25 minutos da partida e sabia não ter que dar explicações a ninguém. 

Troco uma mirada prolongada com um GNR que me olha com pena, aceito a derrota e entrego-me à vida. Cerro os dentes, levanto a cabeça e… Por onde é que é o percurso? É subir e voltar ali à esquerda. Ligo o relógio e começo a correr só contra a montanha. Serpenteio a correr por entre o casario saloio até sair do perímetro urbano e entrar num eucaliptal, que não é floresta. 
O percurso rapidamente se torna técnico e a corrida vai bailando à vez com a passada. Uma estrada separa-me da subida mais difícil do percurso, e a GNR mais uma vez, evita que eu me perca. Subo, e agora sim numa floresta de pinheiros e fetos, por um trilho individual, onde um atleta de perfil de elite vem a coxear devagar montanha abaixo – Então? Lesão antiga… boa recuperação. 

Puxada longa, passada curta. A montanha deixa para trás as árvores e dá lugar ao mato de arbustos de feitio tortuoso e teimoso, daqueles que aguentam ventos e tempestades, que se protegem uns aos outros e que magoam aqueles que deles se aproximam. 
Lá em cima, o Fotografo (Paulo Sezílio) era o guardião do cabeço, testemunha solitária de um sofrimento alheio. Ainda antes do topo, exige-se capacidades de escalada ao corredor.

 Para receber este moderno guerreiro de causas perdidas, moinhos de vento a moer electricidade para a rede nacional. Cá em cima, começo a sentir-me mais confiante, mais à vontade, mesmo por meio de espinhos e lama, a subir com as mãos nos joelhos, sinto-me mais confiante, mais à vontade. 

É curioso como os medos dos caminhos que se apresentam perante nós, são sempre maiores do que as dificuldades que o trilho realmente nos traz, às vezes o futuro faz vertigens, e os medos que nos aprisionam das escolhas que temos de fazer se desvanecem quando tomamos uma decisão e vamos em frente. Temos mais medo de nós do que do caminho.
 Começo a descer em estradão, passo a autoestrada por um viaduto e uma voluntária solitária saúda-me entusiasticamente. Está há tanto tempo sozinha que, alguma agitação naquele quadro pintado a vento, é uma alegria. 

Curiosamente, começo a pensar que será assim que alguém se sente quando está em 1º lugar, sem ninguém à frente a espantar as pessoas dos abastecimentos. 

Um aviso lanca-me numa descida muito técnica para uma zona de lama, encontro os primeiros corredores. Sobe-me a confiança… Subo em direcção a uma crista da serra e faço a cumeada de pedra toda a correr, desço num misto de corrida e patinagem na lama. Chego a um lamaçal, ou melhor um chafurdal, depois de 700 pessoas lá passarem. Ainda bem que já passaram porque dá para reconhecer os trilhos que alguns deles tomaram pelo lado para evitar. 

Ultrapasso vários corredores, entre subidas e descidas, entre passagens por cumes e moinhos, mais tarde ou mais cedo acabamos por encontrar alguém que vai mais ou menos à mesma velocidade.

Aconteceu-me o mesmo que já aconteceu muitas vezes, em silêncio começamos por nos ultrapassar mutuamente à vez, passo eu mas não descolo, passa ele e eu não fico muito para trás, como um acordeão, até que alguém troca uma palavra que quebre o gelo e facilmente passamos a correr juntos, uma transformação de competidores em colaboradores. Nos últimos quilómetros, como vem sendo hábito quando não estou preparado e há muito tempo que não faz ia estas distancias em trail, sinto uma quebra que me dificulta correr normalmente.

Todavia, a companhia e a visão da aldeia de Lousa animam-me para uma chegada à meta, uma chegada paradoxalmente oposta à partida, uma chegada em festa e com comida.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

València - una mena de marató

Una mirada portuguesa
Arrosegava les cames en un manera estranya i nova de caminhar. Malalities comús de qui fa una marató… peró només vaig correr deu kilometres… Vaig arribar de Valencia, de una marató amb una organizació increible i amb una Arribada d'altre món. 


Cinc mesos abans vaig investigar diversos plans i exercicis tècnics de atletisme per fer un plan de entrenaments brutal. Hauria de entrenar tècnica, velocitat, ritme, resistência i tot pensat en micro i macro cicles setmanals. Una setmana després de terminar el plan... Vaig fer una ruptura els isquiotibials... 
He fet els 10 primers kms de la marato on he vist aquesta noia porta el seu nadó en un cotxet. Serà que va arribar així a la meta? 

Doncs, des de Lisboa, adéu marató. Peró já havia pagat el avió, el hotel i la inscrició i hauria de gaudir del viatge i dels amics.

La ciutat ens va rebre amb les sevas torres i esglésies constrüides de pedres que em semblan remullades en safrá. El sol també ens va brindar amb uns dies de un estiu hivernal. La torre de la Séu, el Miquelet, em va recordar de seguida la torre de la església de Santa Maria a Puigcerdá. Benvinguts al gòtic català d’una banda el altre…

Abans i després de la marató, passejant per la ciutat, en rituals de preparació i recuperació, hem trobat plaças i esglésias. I, com som en temps nadalencs, vam començar per la de San Nicolau, de estil gótic e barroc. Van demanar “un áudio-guia en anglés i cinc en espanyol, si us plau”… contesto “No! Un áudio-guia en anglés, quatre en espanyol i una en valenciá, si us plau”.

-“Es que parlo una mica de Catalá” amb vuit ulls sorprés mirant-me i altres dos, de la meva dona, mareats .

-“ah, molt bé”, m’há dit la noia amb un sonriure orgullós. -“Merci”…”De rés”

Després de une visita a una sex-shop, on mai vaig practicar la llengua, i d’un dinar de pasta, va ser hora de anar a la església barroca dels Juanes (Joanes?). Un cop més “si us plau, son 4 audio-guies en espanyol, una en anglés i…”, “un en valenciá, es que hi ha un freak en el grup”. Una vegade més vaig sentir el noi orgullos de la seva llengua. “I parlas molt bé” m’ha dit. Em vaig fondre quan la noia va fer une relliscada.…

Finalment, una darrera visita, el museo de la Seda. Una industria florescente a la ciutat des de la edar mitjana fins al ségle divuit, i que há creat arrels al Pais Valenciá, el vespre hem trobat noias i nois vestits com al segle divuit que es dirigien a un ball tradicional, on s’escoltava una gralla. 

Bé, com esperava, la ciutat es un creuament de dues cultures, une fundació sarraïne i després catalana, i a une altre banda una influencia castellana. I aixó va crear una lluita interior. El pais sempre va demonstrar la seva distincio amb catalunya I en les primeres impressions, la ciutat es ven, i claramente amb els maratoner va ser aixi, com una gran ciutat moderna espanyola. Amb festes “de toros”, tapas i sevillanas.


Peró un ull més vigilante va trobar, de manera una mica amagada, una ciutat que guarda només per si mateix, una cultura de arrels catalans, com la llengua i molt de la seva arquitetura. Que a vegades s’envergonya d’aquesta, peró en realitat la ciutat te´una identitat propi i es en aquesta identitat que penso que les sevas gents haurian de invertir.

El final, en un dia ple de pluja i fred, abans de la eixida fins a l’aeroport, un dinar de arrós de fesols i naps. Un brou de arrós de safrá amb fesols i naps, un recepte d’hivern que ens ha escalfat el cor. Adeu Valencia, ens tornarem a trobar.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Sintra Xtreme Trail - Uma história de Natal


Uma história de natal

Diferente

Só Minha

 

Domingo

Ainda os olhos do Sol não se tinham aberto totalmente e já estava parado na linha de partida, com o controlo zero feito, o colete, a manta, os géis e as barras energéticas, as garrafas de água cheias, coladas a um peito que bate forte, e um boné bem apertado à cabeça para prender algum segredo que pudesse ter vontade de voar. 

Aquele silêncio gritava-me, na espera de uma prova que demorei anos a sonhar. Quando soasse o apito abrir-se-iam as portas para uma aventura de 31 kms que me iria lançar pelas entranhas da serra mais sonhada, por subidas e descidas, estradões e trilhos que serpenteiam adentro do ventre mais verde de Sintra.

Transportava um segredo comigo…

Segunda-feira

Abri os olhos… deitado na cama com o cérebro já a tomar o pequeno-almoço e querer sair enquanto o coração tinha medo de dar o primeiro passo. É hoje! Tomei banho, vesti-me e comi com a maior naturalidade que conseguia ter. Com a minha mulher, obriguei-me a conduzir o carro e o corpo até ao Centro Paroquial.

Uma conversa com a diretora do centro e uma psicóloga introduziram-me e levaram-me à casa onde estavas, sem saber que eu vinh32a. As minhas mãos suavam, o tambor fazia de coração, quando abrissem aquela porta finalizar-se-ia a maior travessia no deserto da minha vida, e iniciar-se-ia a maior aventura, a mais sonhada, a mais lutada, cheia de ilusões prados verdes onde sorrir, correr e dançar, lagos para chorar e montanhas para trepar.

Domingo

Disparou o tiro, disparou o coração e disparámos a correr dos Bombeiros de São Pedro serra acima pela rampa de Santa Eufémia. Tento acompanhar os meus companheiros, alguns ficam para trás, pouco a pouco começo a ouvir o meu corpo pedir-me contenção e deixo outros tantos ir numa viagem que cada um terá de fazer só.


A subida pela encosta nascente de Sintra até ao primeiro abastecimento é feita ainda com as garrafas repletas de entusiasmo, no Chalé da Condessa, por cima de estradões e por baixo de eucaliptos. Ali reabasteço de líquidos e, já cá em cima da serra, mergulho de cabeça num mundo de brumas e sombras, pintado de castanho, verde-escuro e branco, onde o futuro só se deixa descobrir depois de cada curva.

Segunda-feira

Num tiro, eu e a ansiedade empurramo-nos um ao outro, ao passar pela porta, as senhoras do centro de acolhimento desarmam-me os nervos com um grande sorriso. Eram 10h da manhã, tu tens 11 meses, uma pele cor de mel e ainda dormes. Dizem-me que dormes a noite seguida, que ainda não andas e que sempre que passa música, sem que ninguém te tivesse ensinado, o teu corpo reage a dançar.

Em apenas algumas horas tenho de aprender a tua vida toda, aprendo a fazer o leite e o biberão, a fazer papa, a fazer a sopa, a trocar fraldas com cocó e sem cocó, dar banho, aprendo a adormecer-te para a sesta. A levar-te para o parque a andar e correr segurado pelas mãozinhas…

São 21h, não jantei e alucino num raide ao Ikea de Alfragide para comprar um quarto de bebé com urgência. Um berço, um colchão, duas almofadas, dois edredons, lençóis, fronhas, um armário, uma cómoda, um tapete e uns quadros para dignificar o quarto despido que havia dentro. Entregam na 4 quarta…

Domingo


A corrida entra no meu mundo preferido de brumas, sombras e odor de terra molhada. Aqui tudo é vivo e tudo é uno. Seres invisíveis acompanham-me nos lençóis de névoas, entram no bosque de cedros e pouco a pouco um frio invernal vai tomando conta do meu corpo.

Mas este é o meu lugar, onde treino todos os fins-de-semana. Sinto-me bem, conheço os caminhos e a confiança dá-me velocidade. Sinto-me livre, sinto-me leve, ultrapasso alguns atletas do norte enquanto queixam da dificuldade do terreno.


Os estradões dão lugar aos trilhos, entro num estado de híper-vigilância, apuram-se os sentidos, olho para perto e longe ao mesmo tempo, escuto o meu coração a bater forte em uníssono com o da serra, sei e sou tudo o que se passa à minha volta, salto por cima de raízes que se entortam no caminho, pedras que é preciso ultrapassar e que brincam com os pés a cada passada. Não há grandes subidas e descidas até ao Abastecimento dos Capuchos… Abasteço-me de 1 litro de água. No frio da serra avisam-nos, a partir daqui são 12kms sem abastecimentos…



Terça-feira

Como um peixe fora de água estou eu no centro da sala de brincar, rodeado de crianças, rodeado de um desconhecido que sempre procurei, a aprender uma linguagem que me leve atá ti, até vocês, e que rapidamente descubro que afinal sempre soube falar, somente me tinha desligado de um eu infantil.

Pego-te ao colo, e nesse preciso momento todos os outros bebés começam a chorar, a implorar por colo, no dia-a-dia num centro de acolhimento não há colo para todos, o colo é um bem raro, um bem de luxo na vida aquestas crianças.

Dou-te colo a ti… tenho de dar colo à Inês… e à Maria, ao Marco e à Lara. A Lara… A Lara tem a tua idade e foi vítima de negligências graves, a Lara tem a tua idade e tem metade do teu tamanho, a Lara tem a tua idade e vai todos os dias para a fisioterapia, a Lara tem a tua idade e não grita por colo, a Lara só tem onze meses de vida e conforma-se num canto com o abandono, a Lara tem a tua idade e quando lhe pego ao colo devolve-nos o carinho com o sorriso mais lindo e ternurento.

De noite é altura para um raide louco à Wells, comprar chuchas, biberons, pratos de sopa para bebés, pratos para bebés, colheres para bebés, babetes para ti (e para a minha baba). Comprar cremes para o corpo, gel para banho, banheira, pó de talco, creme para assaduras, gel para as gengivas que te estão a nascer os dentes, ah e fraldas muitas fraldas. Esqueci-me de alguma coisa?

Muitos anos antes, num tempo que não era tempo, os cursos da Segurança Social e a literatura lida entretanto diziam que era altura de investir na relação contigo, na criação de uma vinculação de pai para filho e de filho para pai. Hoje é terça-feira, segundo dia que te conheço, por alguma razão desta confusão engano-me e chamo-te Alex frequentemente e estou apaixonado por ti e por quatro outras crianças que gatinham à minha volta e saltam todas para o meu colo.

Pego-vos ao colo e descubro uma dor nas costas que só vai passar daqui a uma semana…

 

Domingo

Posto de Abastecimento do Convento dos Capuchos: Contemplo uma última vez aquele local de meditação, apartamentos T-Zeros de granito forrado a musgo para alojamento local na idade média.


Desço ziguezagueando até à barragem do Rio da Mula. Uma grande volta por detrás da serra e subo a custo o Trilho das Viúvas a custo, sentindo a cada passada o acumulado de séculos de húmus fofo depositado pelos cedros debaixo dos pés, até lá em cima ao Santuário da Peninha.


A meio caminho da descida a serra despe o seu capacete de neblina para que o sol e o calor reclamam o seu lugar no mundo.

Quarta-feira

Hoje é o dia do primeiro teste. Estou ansioso, estou expectante. Já comprei a cadeira para o carro, tudo corre bem entre nós, dou bem a comida, brinco bem contigo, aceitas o meu colo e não tens vergonha em mostrar-me as vergonhas para te mudar a fralda.

Ontem vieram montar o quarto e hoje vens dormir a sesta cá a casa. Testar o equipamento novo, testar os meus conhecimentos novos, testar se te sentes em casa.

Depois das tarefas matinais no centro de acolhimento, tratado e vestido e levaste-me para brincar no jardim. Gostas de gatinhar, correr, subir e descer escadas, experimentar pisar a terra fresca, as folhas e as raízes. Se te dão hipótese para isso, se te abrem as portas, explodes em atividades. Não paras, exploras o mundo à tua volta, sequioso de tudo, para ti tudo é novo, tudo é um desafio, com os olhos abres a boca da alma e absorver o mundo inteiro de um só golo.

Trago-te para casa. Dão-te almoço à boca, sopa de vegetais e massas, e adormeço-te. Ficas a chorar sozinho no quarto um bocadinho, mas já sei que é assim. Adormeces…

Bochechas redondinhas e um narizinho que inspira e expira longamente, dormes ao compasso da dança de um anjo.

Foram anos e anos a percorrer lugares onde nunca ninguém perdeu nada, em dias que se incendiavam pelo oeste, linhas de pontos que ia unindo, festas e corridas, corridas e festas, referências de um caminho que ia inventando e devorando sem parar e olhar para mim, e que me levassem a algum final que fizesse sentido.

Domingo

Da Peninha desço novamente à barragem numa vertigem, começo a provar o sabor do cansaço e do calor. Subo o trilho Kamikaze, deixo de correr e começo a andar… devagar, as pernas começam a sentir-se bambas mas sinto uma confiança estranha em mim. Pouco a pouco vou deixando para trás vários companheiros de caminho.


Tinham-nos avisado deste troço, longo com necessidade de autonomia completa, que começa a cobrar o seu efeito em mim. Ainda assim, depois de várias paredes longas volto a correr por trilhos e estradões.

A motivação para continuar a partir de agora tem de vir de dentro. As pernas e o corpo estão cansadas, obrigo-me a correr até aquela pedra, depois àquela curva, à outra curva, à outra pedra, a corrida torna-se numa sucessão em linha de reptos auto-impostos e pontos individuais que espero nos levem a alguma meta que faça sentido.

De súbito, tropeço numa raiz e voo até que o chão me recebe com alguns raspões. Doi-me o joelho. Ergo-me no meio da nuvem de pó que eu próprio criei e continuo até à Lagoa Azul.

Mas já cansado e quebrado agarro-me ao segredo que transporto dentro, um tsunami inexorável de esperança que se espalha devagar desde o coração até á ponta dos membros. Conheço pela primeira vez uma força que desconhecia, sorri para dentro e com as mãos fincadas nas pernas, começo a puxada final até ao Chalé da Condessa.

Vou atrás de um casal que se motiva continuadamente, companheiros de vida, ombro a ombro num óbstaculo que a vida lhes pôs à frente. Subo sozinho com as mãos apoiadas nos joelhos. A subida é dura, mas o humor do casal torna a terra menos pesada. Dizem que há cervejas… fresquinhas…

Quinta-Feira

Dia muito importante vens dormir pela primeira a noite toda cá a casa.

O cansaço acumula-se no corpo quebrado, tem sido uma semana a entrar no Centro de manhã ir almoçar quando posso, voltar, brincar a tarde toda e passar a noite a tratar do teu quarto.

Chegaste sem anúncio prévio, sem planeamento ou mentalização. Numa questão de dias a vida mudou de cabeça para baixo. E mudou para sempre, mas do sempre ainda não me tinha apercebido.

Mais abaixo, uma equipa do Centro Paroquial dedicada com jovens e adultos com atraso, jogam à bola uns com os outros. Noto que, de quando em quando, uma monitora nos vai mirando de soslaio.

Ao final da manhã vejo-a escapulir-se do grupo pé ante pé e vir ter connosco com os olhos raiados de vermelho – Olá, já percebi o que está a acontecer, deixem-me despedir dele - diz ela com a voz embargada – Lembras-te de mim fofinho? – Enquanto o abraça forte - Fui eu que te recebi do hospital, apenas com dias de vida - as lágrimas correm-lhe cara abaixo – Sê muito feliz com a tua nova família – dá lhe um beijinho, vira-se e despede-se – Sejam muito felizes.

Vamos para casa, eu com um nó na garganta com tudo o que aconteceu, só é possível para elas fazerem um bom trabalho nestas funções se se envolverem emocionalmente, lágrimas e a dor de coração, são o prémio por um trabalho bem feito. Depois de tu jantares deixo-te à noite pela primeira vez a dormir no teu berço. Pouco a pouco adormeces (não sem uma grande choradeira primeiro) e ouço a tua inspiração e expiração longa.

Domingo

Inspiro, expiro, inspiro, suspiro a vida é um eterno não desistir de respirar, concentro-me, ignoro as dores nas pernas, reduzo-me tão só a uma máquina de respirar e de pôr um pé à frente do outro. Suspiro!


Chego de novo ao Chalé da Condessa, agora no sentido de retorno. A rapariga do Posto de Abastecimento olha para mim e diz-me, com ar de preocupada, que estou a sangrar do joelho e vai buscar uma mangueira para me lavar a ferida. Tratamento VIP. O mais difícil da prova já está! As subidas e descidas técnicas estão para trás, só uns três quilómetros em estradão de terra batida me separam da meta. Um sentimento de realização enche-me o peito.

Arranco para dentro de um túnel de árvores paradisíaco que flui suavemente pela serra abaixo, com uma leveza no coração e um peso nas pernas, desço a pensar que nunca uma prova de trail me tinha corrido tão bem.

Sexta-feira

As primeiras horas da manhã vêem-me chegar ao Centro de Acolhimento, contigo no banco de trás, antecipo um dia difícil, um dia muito emocional, cheio de despedidas e eu com medo de ceder à emoção, de mim próprio. Encho-me de coragem, estão lá todas as empregadas que trabalham por turnos na casa, estão lá as assistentes sociais, a psicóloga e a diretora do centro paroquial.

Um discurso introdutório da Diretora ajuda a adiar o inevitável, a partir de agora passarás a viver em nossa casa, num período experimental de 6 meses, com visitas mensais da Segurança Social, findo o qual terão de efectuar um relatório ao Tribunal de Menores, para que este pronuncie uma decisão definitiva.

Chegamos ao momento em que se instala um silêncio incómodo, ninguém fala porque o próximo passo seria sair pela porta fora para iniciar uma vida nova, sem olhar para trás. No dia anterior tínhamos tido um aperitivo do que seria a despedida no jardim com a monitora. Reunimo-nos no quarto, sentados nas camas, com a vozes embargadas (só há mulheres naquela sala) pouco a pouco recordam-se os teus momentos na casa, desde o momento em que chegaste ao Centro, quando foste ao médico, quando começaste a dançar... Começam a correr rios de memórias que juntam ao discorrer de lágrimas e pouco a pouco, no meio círculo de pessoas, gota a gota, se juntam num mar de amor.

São dez da noite e estou deitado na cama de barriga para o ar e braços abertos, a olhar para o tecto com o peito a transbordar de alegria e um sorriso estupido na cara.

Do teu quarto chega-me a canção da respiração, pesada, inspiração, expiração, inspiração, expiração… Dormes profundamente no teu berço.

São dez da noite, e sem saber, numa história de amor incondicional que está por viver adoptaste-me e foste adoptado.

Domingo


Chego à reta da final e, à medida que me aproximo da meta sinto-me invadido por um imenso sentimento de gratidão. Ardem-me os olhos, treme-me o queixo, abro os braços, e viro as mãos para cima, agradecendo.


Amanhã, segunda-feira, vou conhecer-te.

 


terça-feira, 19 de junho de 2018

Viagem ao Pirinéus Catalães - Dia 1

Preconceitos - Nem tudo é o que parece

 
Quando acordei, sentia os meus pulmões agrilhoados pelo ar mofo de passados podres e ansiosos do vento frio dos sonhos novos. Tinha decidido largar o presente, levar na bagagem apenas as paixões que planeava vestir e que se cruzavam todas nos Pirenéus catalães. Estávamos em 20 de Abril e o voo para a liberdade era ás 7:30 na Portela, e o acordar duas horas antes, tinha de aprender a voar sozinho.
 

A bordo, Feito o check-in só com bagagem de mão, para viajar leve, pus-me a fazer jogos mentais de quem, pela fisionomia das pessoas é que iria para Barcelona, quais iriam para Amsterdão e quais para Londres? Ou quanto tempo levaria eu para ouvir falar catalão? Passo o controlo de passageiros, entro no avião com o bilhete na mão e o número de assento bem na cabeça e sento-me ao lado de um senhor africano, mesmo negro, grande de altura, grande de largura e grande de sorriso.
 
Enquanto as hospedeiras faziam a coreografia a bordo mil vezes ensaiada e outras mil apresentada, que nos ensine como morrer seguros se porventura o avião caísse. Pedem para levantar os tabuleiros e chegar os assentos à frente e o meu vizinho do lado responde num olhar cúmplice, "ainda mais?"

 

O arranque para levantar voo adormeceu-me até meio da viagem e a segunda metade foi feita a comer a sandes servida pela TAP e o planificar do resto da viagem. Chego ao Prats, sinto saudades de ouvir falar catalão e olho ao meu redor, a tentar apanhar nas caras mais mediterrânicas às espera de sons que me sejam reconhecidos. O meu colega africano liga o telefone, eu ligo o meu, vejo um casal de raparigas com o tez morena e ar alternativo, afino o ouvido e ouço um sotaque brasileiro. Recebo mensagens em catadupa, o telemóvel do meu camarada africano parece que ganhou um jackpot de mensagens, tiro o meu trolley da gaveta por cima de mim, o meu colega grande, de sorriso farto põe o telefone no ouvido e diz: "He aterrat!", afinal o primeiro a falar catalão estava ao meu lado e eu perdi uma hipótese de parlar la llengua.

Barcelona

 
Apanho o Aerobus e, quando as portas se abrem numa Plaça de Catalunya inundada de sol, de confusão e de turistas, é vestido para o inverno num meio dia de verão que aterro finalmente na cidade feiticeira. Estão cerca de 25º de temperatura.

 

Faltam duas horas para o comboio que me levará a Puigcerdà, que tenho de encontrar um local para almoçar. Um tasco ao lado do McDonald's chama-me a atenção. De decoração simples em madeira e recheado de empregados carrancudos e apressados, o Picadero acaba por ser a solução gastronómica mais acessível para quem quer viajar pela Catalunha e evitar os habituais, Mc Pollastre, Quart de Llibre amb fromatge ou o Big Mac. Peço como entrada um Pa amb tomáquet, a simplicidade de um pão torrado com um fio de azeite e barrado com tomate esfregado. Pessoalmente acrescentaria orégãos, mas isso é a minha costela de português a falar.
 
Bem no ventre de Barcelona, chego à estação de Plaça de Catalunya, e de bilhete na mão contemplo a massa de nativos que vão e vêm, sobem e descem de comboios num ritmo atribulado. Vejo as caras de preocupação de uns, de alegria de outros. Cruzo-me com olhares cinzentos e semblantes carregados. Reparo na rapariga a passar na plataforma em frente com um Hijab a cobrir a cabeça, vestida de tshirt de alças e com uns calções curtos, num estilo que eu classificaria de islâmico sensual. Atrás de mim um grupo de rapazes na galhofa, e ao meu lado, uma rapariga só, de olhos vermelhos pregados na plataforma quase a chorar, e tento adivinhar se acabou com o namorado ou se teve uma má nota num exame especial.
 
Vejo os comboios a bombar o sangue e o oxigénio que faz viver uma cidade assim, comboios carregados não de homens e mulheres, mas carregados de sonhos e desilusões que despejam e levam que motivam a trabalhar, a conhecer pessoas, a conhecer o amor e o desamor, a levantar prédios, construir famílias e edificar memórias de momentos que ficarão para sempre naquelas ruas.

 

Há quem não goste de comboios, quem diga que são lentos, que são desconfortáveis ou não confiam nos horários que mantém, mas eu gosto de comboios. Gosto da sensação de pousar a mala, abandonar o corpo no banco e por os olhos a passear pela paisagem que nos envolve e voar com a mente. Gosto de me libertar da necessidade concentração constante que o carro exige, e na necessidade de controlar tudo que a vida atual requer.

Três horas de Comboio

 
“Linea R3 tren amb destinació a La Tour du Carol”, é a minha vez de subir e procurar um lugar num comboio que se enche de estudantes e trabalhadores. Esperam-me três horas de viagem, mas se fosse de carro pouco menos tempo faria e os 12€ do bilhete ficam muito em conta. Arrancamos e aos poucos saímos dos túneis do metro e chegamos aos bairros suburbanos de uma cidade, mais ou  menos limpos, mais ou menos organizados onde grande parte da gente sai. Fico sozinho na carruagem com um casal de idade, uma universitária e uma senhora de meia idade.
 

A paisagem urbana vai dando lugar à campestre. Seguem-se longos campos pintados de espigas verdes aleatoriamente pontuados de vermelho pelas pétalas de papoilas com uma mansão rural de calcário a dominar o terreno. Terreno após terreno, e mansão após mansão, a paisagem lembra um postal da Toscânia, ou melhor, se calhar a Toscânia é que me lembra a Catalunha. Por detrás deste primeiro plano idílico, montes carregados de bosques mediterrânicos o cenário.
 
À minha volta senhora de meia idade martela freneticamente no portátil, o casal de idade viaja para casa de mão dada, aparentemente, preocupado e a rapariguinha universitária de cabelo castanho claro apanhado num rabo de cavalo, não pára na cadeira, com um olhar inquieto que procura à sua volta uma segurança que não encontra. Sim, é verdade, confesso, tenho uma tendência para fazer filmes na minha cabeça, e com a idade aprendi a gostar de ser assim. Baixo os olhos da carruagem e mergulho num comboio de letras e palavras do livro que levo no colo. Mas este comboio de letras faz mais paragens em mais estações no seu caminho que o comboio com as janela abertas para um mundo novo que me chama lá de fora e facilmente mudo de viagem novamente.


 
Pouco a pouco, depois de passar pela cidade Vic os montes mediterrânicos dão lugar a montanhas com escarpas de meter respeito. O casal adormeceu, por outro lado, é um milagre como aquele computador ainda tem teclas e a rapariga universitária hesitante muda de lugar para o fundo da carruagem do outro lado do corredor onde me encontro, , tira uma flauta e uns cadernos da mochila, e segura a flauta em frente à boca decidida. Abre a sebenta e vejo uma gralha desenhada (uma gralha é um instrumento tradicional catalão de sopro com palheta dupla como a gaita de foles, que é tocado normalmente com Tarotas e outros).
 
A rapariga tímida e hesitante, agora já não o é, agora que assumiu a sua paixão o nariz linear e o maxilar proeminente, a estudar musica, tornou-se numa mulher firme e confiante, quase uma guerreira.

 

Entretanto, entrámos nos Pirenéus. Quase não consigo ver o topo das serranias acima de mim e, acima das florestas de pinheiro negro, faia e abetos, começam a aparecer os primeiros lençóis de neve. O comboio avança a uma velocidade mais lenta e ao nosso lado o Ter desce as pelo vale que nós subimos. Nas margens do riu, nota-se que as pastagens estiveram debaixo de neve durante o Inverno. A arquitetura também se alterou, as casas agora são de xisto, com portadas de madeira e telhado de ardósia. Parece que chegamos à Europa Central.
 
Nesta altura, sucedem-se as paragens em aldeias pequenas, no meio da montanha, ligadas ao turismo de inverno na neve, Toses, La Molina, Utrx/Alp e finalmente Puigcerdà. São seis horas da tarde e quando saio do comboio, estão cerca de 12º , o ar fresco bate-me na cara abre-me os olhos meio adormecidos da viagem e acelera o coração.

 

 
A estação de comboio tem dois andares e foi construída no final do séc. XIX, e o segundo andar é o Hotel Parada que reservei. O Hotel em si, ou seja a renovação interior, foi efectuada há muito poucos anos, mas respeitando as vigas, os tectos e as janelas originais. As instalações são encantadoras, com o quarto as ser decorado em madeira e pedra em vários tons de cinzento. A cama é enorme e recebe os restos de mim num abraço envolvente. casa de banho impecavelmente limpa e o duche farto e quente.
 


Estou pronto para ir jantar. Atravesso a praça da estação e, indeciso entre ir de escadas ou de elevador, apanho… as escadas. Que não é fácil, são quase cem metros de altimetria entre a estação e o centro da cidade, suado e quebrado quando chego ao topo, viro-me para trás, naquela luz dourada de fim de tarde respirei fundo e de uma golfada só inalei todo aquele vale entrou dentro de mim, o ar, as montanhas enormes, os picos de neve, as florestas, os prados pintados de um verde impossível ficaram insculpidos e pintados no meu peito. De um golpe só a Cerdanya tinha-me roubado o coração, o ar e os sonhos para sempre, a curva do seu vale era como o sorriso de uma rapariga que nos marca para sempre. Os meus olhos ficaram presos num ponto qualquer ausentes de mim. senti que eu sempre conhecera aquele local, de repente sempre pertencera ali.



quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Peter és tão parvo! - Carta Aberta de Despedida a um Professor de Salsa






 (escrevo zangado)


Há uns anos atrás, enquanto a minha vida pessoal navegava pelo centro de um furacão de emoções, onde o meu eu exterior e meu eu interior se tentavam encontrar um ao outro, uns amigos convidaram-me a ir experimentar as aulas de salsa com o Peter na EDSAE, e tanto o nome daquela escola como o do professor esmagavam-me de respeito e medo.



É preciso referir que desde há muitos anos o Peter é um dos cantos de um triunvirato de Salsa (que também inclui a Bibi e o Angel) que inflama a comunidade Salseira nacional. Três pessoas que partilham um fogo na cabeça, que lhes desce aos braços, ao torso e às pernas, e que quando dançam semeiam o mesmo fogo, a mesma paixão, nas cabeças de quem se deleita a ver. Foram os congressos organizados, as coreografias que foram desenhadas, as festas montadas que engravidou e pariu esta dança neste país que alimentou uma comunidade esfomeada sempre por mais e mais daquela fonte.


Tremolente aceitei o repto e, pé ante pé, às 21:30 em ponto duma quarta-feira qualquer de primavera, lá entrei num estúdio de dança, de chão de madeira encerado e um espelho a toda a largura, para encontrar no centro da sala uma espécie de Fauno Prateado, ou de Sátiro Grisalho a comandar, com sotaque portuense, as operações.
 

Com aquele Sátiro encontrava-se a ninfa Dra. Aurélia, perdão Ariella, e a aula lá começou. Para minha surpresa, passo a passo, fui sendo capaz de replicar medianamente o que era proposto e notava, principalmente pela expressão das raparigas da turma que devia estar a fazer alguma coisa bem (moltes grácies aos professores antecessores Mário e Sónia pela preparação anterior).

 
Avisaram-me no início (fontes anónimas e protegidas) que tinha um feitio terrível, que era muito exigente, que maltratava e rebaixava os alunos, o que servia para aumentar aquele receio inicial.

 
Com o passar das semanas e meses, veio alguma descontração, perante aquela fobia inicial, e o apreciar o humor fino do Peter, palavras que nos partem em gargalhadas. Piadas de pitada amarga, que se digeriam com uma gota de sarcasmo. Sempre pensei o sarcasmo, em geral resultasse de uma forma de defesa pessoal contra sonhos que se tornaram demasiado pequenos para alguém, que deram em folhas secas quando não se substituem por outros novos, ou fruto de desejos que não sendo colhidos na altura certa, fermentam com o passar do tempo, como a uva e o vinho. Mas isso …

 
A verdade é que nunca encontrei um professor que conseguisse tão bem dissecar um passo, uma coreografia. Como se fosse um cirurgião latino, aqueles olhos eram um bisturi afiado que separavam cada fase de cada passo, entre movimento de mãos, de braços, de pé e de corpo. Olhos que identificavam qualquer erro, se focavam nessa fase, e se propunham a corrigi-lo e reuni-lo com as outras fases até que o passo, se apresentasse no final uno com uma cicatriz perfeita, invisível.

 
Depois de aprender um passo lá ficava eu com o ego lá em cima, mas tu Peter, não contente com isso, detetavas sempre algum pormenor que podia ser melhorado, uma mão que devia estar mais abaixo naquele tempo da musica, ou um pé que devia passar pela frente e não por detrás para não desequilibrar o par, e aquele humor hepático, ou outonal se preferires, era perfeito para me picar, para me mandar lá para baixo outra vez e me auto obrigava, a engolir o orgulho, a cerrar os dentes, a tentar fazer melhor, no fundo a aprender a ir mais além.

 
E eu todas as semanas lá ia às aulas, num desejo ardentemente masoquista de que me azucrinassem a cabeça, um desejo de aprender, que investisses em mim que me chateasses a medula até ao tutano, para eu em troca dar o melhor de mim.
 

E agora vens com uma conversa de que vai deixar a salsa para se dedicar a outras paixões... porque há um ciclo que acabou e que... Sim, claramente um ciclo acabou mas a tua cabeça não!


És tão parvo, mas tão parvo se deixas de dar aulas de salsa. Irrita-me solenemente os fígados que tomes essa decisão. Não só te privas a ti de uma paixão que tu tens, mesmo que te escondas dela, como privas muitas pessoas, dos teus ensinamentos, das tuas piadas, dos momentos passados contigo que são sempre únicos, privas o mundo da semente daquele fogo e do melhor de ti.


Ver este triangulo desfazer-se depois de vinte anos trouxe-me lagartixas aos olhos, fez-me sentir algures entre órfão de salsa e filho de pais da salsa divorciados.

 
Peter, és o melhor professor de salsa que eu já apanhei, e acredita já tive muitos. Se um ciclo terminou, começa outro! Por ti, por muitas pessoas que já tocaste, por outras que poderás tocar, pela vida.


Gosto muito de ti.
Tudo de bom!


Um Abraço de luz

 




Até já



segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A Montanha e eu


O passado não existe, foram apenas pontos da nossa linha da vida que existiram, o passado é o que nos fez o que nós somos hoje. O presente é apenas um ponto, uma fronteira entre o passado e o futuro. O presente é um ponto infinitesimamente pequeno, tão pequeno que na prática não existe, porque quando acabaste de o sonhar já passou. E o futuro é o caminho que desejas trilhar. O futuro é o teu verdadeiro Eu.

O que transforma o ponto numa linha, o que lhe dá continuidade, o que transforma o presente num vector o que lhe dá um sentido, é o futuro, é o sonho que faz com que o ponto se repita, uma e outra vez. O presente é a passada, mas é o sonho que a transforma numa maratona.
A única coisa que existe é a montanha, o que existe é a raiz onde vais torcer o pé, a subida que me faz doer os músculos das pernas, a arvore que me dá a sombra que me abriga, o rio que te vai encharcar os pés, os ramos que abraçam a humidade das nuvens, os gravetos que me rasgam as pernas, o vento que me fustiga o corpo, a rampa que me faz sentir o coração a rebentar por dentro.
Mas a montanha não existe por si só, por estar ali. A montanha existe por que existe o sonho de a subir. Sem sonho, sem expectativas  a montanha ser-me-ia completamente indiferente. E é quando chegas ao cume, a arfar e páras para contemplar a montanha, a sentir o sangue a bombear forte em todas as tuas artérias, e o oxigénio no cérebro, que te sentes vivo morrendo.

Aí, sozinho, esmagado entre a terra e o céu, descobres que o cume da montanha, com todas a toneladas de terra e pedra que tem por baixo, com todos os seus rios e florestas, com toda a beleza que consegues ver, ouvir, cheirar e sentir, existe. Existe mas não à tua volta, existe e sempre existiu dentro de ti. É no cume da montanha, com a melhor companhia do mundo - a tua, que descobres os sonhos que te viram nascer.


 
 
 

 

 

domingo, 18 de setembro de 2016

O Amor dos Velhos É Ridículo






 

Sentado no carro, no parque de estacionamento do Estádio Nacional, espero os meus companheiros de corrida. A poente o dia vai adormecendo lentamente. À minha frente os ramos dos eucaliptos valsam indolentemente ao ritmo dos últimos ventos de verão. Abaixo de mim, estaciona um carro com dois septuagenários a bordo. O que fazem dois idosos num parque tão recôndito? O Amor dos Velhos é Ridículo!

 

Ele sai primeiro do carro e devagar, com dificuldade de locomoção dá a volta pela parte da frente, com uma enorme delicadeza abre a porta à senhora, e estende-lhe a mão com ternura. O Amor dos Velhos é Ridículo!

 

No parque de estacionamento começam a andar de forma muito vagarosa, ao lado um do outro. Ele de fato de domingo, ela de toillete completa, com saia por baixo dos joelhos. Ele impecavelmente penteado com brilhantina para trás e ela de cabelo armado. Os dois oferecem ao outro o melhor de si mesmos. Passeiam de mãos dadas por cima do empedrado desnivelado, ainda tropeçam. Penso: O Amor dos Velhos é Ridículo!

 

Não podiam ir passear para outro sítio? Noutro sitio mais plano, mais seguro? Para o Jardim com o regato ou o mini golf, ou para a marginal, parece que têm alguma coisa a esconder, se calhar têm! Mas esconder de quem? dos filhos? se calhar não são casados, e não querem mostrar se os filhos dele, ou aos dela. Tem vergonha de si próprios com aquela idade. Penso: O Amor dos Velhos é Ridículo!

 

Toda a gente sabe que com aquela idade já não se podem apaixonar. Agora vão namorar com aquela idade... de mão dada. Penso: O Amor dos Velhos é Ridículo!

 

Será que são amantes, escondendo o seu amor secreto? É que parece pelo comportamento deles. Penso: O Amor dos Velhos é Ridículo!

 

E agora ele passa para a frente dela, segura-lhe as mãos e beija-a! Beija-a na boca. Que ridículo! Penso: O amor dos velhos é ridículo.

Já sei, a vida são instantes, cada um deles é único. Temos de nos lançar porque senão quando damos por eles já passaram, são memórias ou arrependimentos. Será que a experiencia dos setenta e tal anos, já lhe diz quando se lançar e quando ficar? Ou é sempre como da primeira vez? Lançar-se de cabeça. Penso: O amor dos Velhos é Ridículo, Ridículo, Ridículo! Quem me dera um Amor Ridículo, Ridículo como o dos Velhos!