quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Peter és tão parvo! - Carta Aberta de Despedida a um Professor de Salsa






 (escrevo zangado)


Há uns anos atrás, enquanto a minha vida pessoal navegava pelo centro de um furacão de emoções, onde o meu eu exterior e meu eu interior se tentavam encontrar um ao outro, uns amigos convidaram-me a ir experimentar as aulas de salsa com o Peter na EDSAE, e tanto o nome daquela escola como o do professor esmagavam-me de respeito e medo.



É preciso referir que desde há muitos anos o Peter é um dos cantos de um triunvirato de Salsa (que também inclui a Bibi e o Angel) que inflama a comunidade Salseira nacional. Três pessoas que partilham um fogo na cabeça, que lhes desce aos braços, ao torso e às pernas, e que quando dançam semeiam o mesmo fogo, a mesma paixão, nas cabeças de quem se deleita a ver. Foram os congressos organizados, as coreografias que foram desenhadas, as festas montadas que engravidou e pariu esta dança neste país que alimentou uma comunidade esfomeada sempre por mais e mais daquela fonte.


Tremolente aceitei o repto e, pé ante pé, às 21:30 em ponto duma quarta-feira qualquer de primavera, lá entrei num estúdio de dança, de chão de madeira encerado e um espelho a toda a largura, para encontrar no centro da sala uma espécie de Fauno Prateado, ou de Sátiro Grisalho a comandar, com sotaque portuense, as operações.
 

Com aquele Sátiro encontrava-se a ninfa Dra. Aurélia, perdão Ariella, e a aula lá começou. Para minha surpresa, passo a passo, fui sendo capaz de replicar medianamente o que era proposto e notava, principalmente pela expressão das raparigas da turma que devia estar a fazer alguma coisa bem (moltes grácies aos professores antecessores Mário e Sónia pela preparação anterior).

 
Avisaram-me no início (fontes anónimas e protegidas) que tinha um feitio terrível, que era muito exigente, que maltratava e rebaixava os alunos, o que servia para aumentar aquele receio inicial.

 
Com o passar das semanas e meses, veio alguma descontração, perante aquela fobia inicial, e o apreciar o humor fino do Peter, palavras que nos partem em gargalhadas. Piadas de pitada amarga, que se digeriam com uma gota de sarcasmo. Sempre pensei o sarcasmo, em geral resultasse de uma forma de defesa pessoal contra sonhos que se tornaram demasiado pequenos para alguém, que deram em folhas secas quando não se substituem por outros novos, ou fruto de desejos que não sendo colhidos na altura certa, fermentam com o passar do tempo, como a uva e o vinho. Mas isso …

 
A verdade é que nunca encontrei um professor que conseguisse tão bem dissecar um passo, uma coreografia. Como se fosse um cirurgião latino, aqueles olhos eram um bisturi afiado que separavam cada fase de cada passo, entre movimento de mãos, de braços, de pé e de corpo. Olhos que identificavam qualquer erro, se focavam nessa fase, e se propunham a corrigi-lo e reuni-lo com as outras fases até que o passo, se apresentasse no final uno com uma cicatriz perfeita, invisível.

 
Depois de aprender um passo lá ficava eu com o ego lá em cima, mas tu Peter, não contente com isso, detetavas sempre algum pormenor que podia ser melhorado, uma mão que devia estar mais abaixo naquele tempo da musica, ou um pé que devia passar pela frente e não por detrás para não desequilibrar o par, e aquele humor hepático, ou outonal se preferires, era perfeito para me picar, para me mandar lá para baixo outra vez e me auto obrigava, a engolir o orgulho, a cerrar os dentes, a tentar fazer melhor, no fundo a aprender a ir mais além.

 
E eu todas as semanas lá ia às aulas, num desejo ardentemente masoquista de que me azucrinassem a cabeça, um desejo de aprender, que investisses em mim que me chateasses a medula até ao tutano, para eu em troca dar o melhor de mim.
 

E agora vens com uma conversa de que vai deixar a salsa para se dedicar a outras paixões... porque há um ciclo que acabou e que... Sim, claramente um ciclo acabou mas a tua cabeça não!


És tão parvo, mas tão parvo se deixas de dar aulas de salsa. Irrita-me solenemente os fígados que tomes essa decisão. Não só te privas a ti de uma paixão que tu tens, mesmo que te escondas dela, como privas muitas pessoas, dos teus ensinamentos, das tuas piadas, dos momentos passados contigo que são sempre únicos, privas o mundo da semente daquele fogo e do melhor de ti.


Ver este triangulo desfazer-se depois de vinte anos trouxe-me lagartixas aos olhos, fez-me sentir algures entre órfão de salsa e filho de pais da salsa divorciados.

 
Peter, és o melhor professor de salsa que eu já apanhei, e acredita já tive muitos. Se um ciclo terminou, começa outro! Por ti, por muitas pessoas que já tocaste, por outras que poderás tocar, pela vida.


Gosto muito de ti.
Tudo de bom!


Um Abraço de luz

 




Até já